De Que Maneira as Práticas Religiosas Contribuíram na Formação e na Resistência de uma Identidade Afro-Religiosa?

Porto Alegre/RS em 20/11/2005

Os africanos sempre tinham de lutar contra o não reconhecimento de suas raízes culturais e, ao mesmo tempo, permaneceram abertos a uma outra cultura religiosa, que veio de uma outra Igreja, de outra história e outra civilização que os doutrinou e em outros aspectos os aculturou em tempos de escravidão, em meio a todas as lutas por afirmação de identidades afro-brasileiras. Não há formas ou expressães puras, e o africano não renunciou à sua cultura, mas sabia ''navegar'' entre dois mundos de natureza diferente e com excepcional inteligência. Sabia se portar de um lado ou de outro, conseguindo assim administrar essa contradição em sua vida cotidiana, comportando-se de uma forma que o fez aceitável em uma sociedade que não era a sua, mas na qual era inicialmente condenado a viver.

Um dos recursos utilizados pelo colonialismo para quebrar culturalmente o afro-brasileiro era o de escravizar a substância de sua cultura e da sua religião, pois ao torná-lo escravo e cristão quebrava-se culturalmente o âmago de sua existência. Os africanos e seus descendentes reencontraram no candomblé um lugar para retomar forças, princípios, serem reconhecidos em uma expressão comunitária e vinculados a seus próprios ancestrais.

''A Igreja pensa que influenciou o africano. Ela lhe tem fornecido novos elementos de culto. Porém, o caminho percorrido não foi o do negro passar de seus Deuses ao Deus dos cristãos, mas, antes, de conduzir o Deus dos cristãos e, sobretudo seus santos em direção a suas divindades africanas.''

O africano no Brasil tira sua força de vida na identidade com os orixá, com os ancestrais, o que corresponde a concepções muito diferentes do mundo e da vida inspirada no projeto ocidental. A sua maneira, o seu jeito de ser são indubitavelmente opostos a esse projeto.

Os africanos haviam todos sido batizados, mas permaneceram ligados a suas antigas crenças. Essas associações lhes permitiram a manifestá-las à luz do dia. Seus cantos e suas danças que, aos olhos dos proprietários, passaram por simples divertimentos de negros nostálgicos, eram na realidade reuniões em que invocaram os deuses da África.

Quando o mestre passava ao lado de um grupo que cantava a força e o poder de Xango, o trovão, ou de Oya, a divindade dos ventos e tempestades, ou de Obatalá, a divindade da criação, e perguntava qual era o significado dos cantos, recebia infalivelmente a seguinte resposta:

Yoyo, à nossa maneira e em nossa língua, estamos venerando São Jerônimo, Santa bárbara ou o Senhor do Bonfim, pois cada divindade africana havia sido assimilada aos santos e às virgens da religião católica. É assim que, sob o manto de um aparente sincretismo, as antigas tradições se preservaram através dos tempos.

Curiosamente, dizem que todo africano que tem o sobrenome de ''dos Santos'', é descendente desses escravos ''dos Santos''. De fato a Igreja era parte da vida dos escravos e este costuma se perpetuar entre seus descendentes. Por isso que ainda se busca um status social no batismo. Eis a razão por que se dizem católicos. Isto não quer dizer absolutamente, que renegue sua própria fé, mas que não se opõem estrategicamente às duas filiações.

Foi assim, de fato, que a história começou. Hoje seria muito difícil negar o passado, onde os escravos sempre foram colocados à parte dos senhores, por essa desigualdade foram incorporados por sucessíveis gerações, ao ponto de fazer parte da própria vida. As pessoas assumiram essa realidade, conscientes dessa ambivalência, face à sua preferência profunda. É certo que convivência existe, às vezes em forma de justaposição, às vezes de justificação da dominação, mas certo é que essa luta sempre existiu enfrentando conflitos e contradições.

Os negros se servem do cristianismo quando o mesmo lhes é útil, mas sua verdadeira expressão religiosa eles encontram na prática dos Orisá. Esta é a sua religião, a que é feita para eles.

Resistência
  • A partir disso, entende-se que os negros cultivaram seus sentimentos religiosos durante todo o período colonial-escravista desenvolvendo uma dinâmica de resistência, cuja estrutura formal e orgânica, aparece com as notícias dos primeiros terreiros a partir de 1830.


    Parte-se então do pressuposto de que existe no Brasil, uma continuidade cultural e religiosa africana, reelaborada na dinâmica da sociedade brasileira, e o candomblé representa uma organização de resistência, através da qual, a grande maioria dos descendentes de civilizações africanas se reconhece, e nela encontra ânimo para o enfrentamento da sociedade abrangente de natureza excludente.


    Na medida em que os adeptos recriam a organização social inspirada em valores africanos no terreiro, através dos da família de Orixá, os filhos, adquirem, mediante o rito de preparação, um lugar em uma comunidade que lhes oferece dignidade e reconhecimento, e neste processo existe um forte componente de identidade cultural coletiva. O fato de ser integrado ao terreiro, incorpora um comportamento novo, que chega a ser traduzido em orgulho de ser afro-brasileiro, de assumir-se e, consequentemente, de estruturar uma segurança pessoal, capaz de desmistificar estereótipos e preconceitos, além de sobrepor-se às determinações da vida cotidiana, marcada por sistemas de opressão, aos quais os africanos escravizados e livres sempre responderam com uma enorme capacidade de invenção e realização.


    Na estrutura comunitária do candomblé, o que salta aos olhos daqueles que frequentam os terreiros é a beleza, o cenário; porém, através de tudo isso, existe uma capacidade extraordinária de organização e trabalho sob a aparência de mitos, mistérios, crença através dos rituais.


    A comunidade organizada revive sua ancestralidade, celebrando rituais, pertencendo a uma estrutura que possibilita o enriquecimento da sua própria vida pessoal e social, através da aquisição de diferentes níveis de reconhecimento e competência, imersos numa dinâmica sócio-cultural que constitui uma das dimensões essenciais dos terreiros, apontando para uma maneira diferente de viver em sociedade.


    O candomblé constitui um processo de busca e reencontro de uma referência social e cultural legada pelos africanos e seus descendentes ao processo de construção da sociedade brasileira. É também um recurso político para o enfrentamento da sociedade abrangente.