Templo para os Pretos
Belém/PA em 29/10/2007
Cultura e religião são conceitos inseparáveis. O maior exemplo disso é a raiz africana do candomblé, há séculos fincada em território brasileiro. Coberta de mistérios e rejeitada por muito tempo, a prática da Religião Tradicional Africana tem, atualmente, espaços bem maiores dentro da sociedade. Para mudar a idéia de que esses ritos se restringem aos terreiros de 'macumba', como são conhecidos popular e pejorativamente, o professor universitário e sacerdote Walmir Fernandes criou o Templo da Religião Africana. Desde 2004, o pesquisador tenta quebrar os preconceitos e, ao mesmo tempo, praticar sua religião da forma mais livre possível.
''Como é uma religião de preto, as pessoas acham que não há liturgia (cerimônias religiosas)'', diz Walmir. Para o sacerdote, o culto dos Orixás tem todos os rituais que outras religiões manifestam. Há iniciações, casamentos e cultos de morte. A diferença entre elas, segundo Walmir, está no fato de que a essência do candomblé não segue uma doutrina maniqueísta. ''Não temos a visão do pecado, bem como não existe céu e inferno ou bem e mal. Entendemos que o ser humano tem livre-arbítrio para agir e trilhar seu próprio caminho, sempre no sentido da evolução'', explica.
A religião africana, segundo o pesquisador, foi criada há cerca de sete mil anos. 'Ela chegou ao Brasil com os negros, trazidos à força', diz Walmir. Por causa disso, o culto religioso chegou aqui sem credibilidade, desacreditado. 'Enquanto eles eram considerados verdadeiros deuses na África, viviam como animais aqui', explica o sacerdote. A tradição religiosa vive apenas na oralidade. Não há Bíblia ou Corão. Mesmo assim, o Brasil guarda boa parte da memória cultural africana. Para Walmir, o que manteve viva a cultura africana foi a religião.
O candomblé é primitivo. Na opinião do sacerdote, essa é uma característica das formas ritualísticas da religião. ''A condição de possessão chama muito a atenção porque as pessoas não compreendem aquilo'', explica Walmir. O candomblé, ao contrário do que se pensa, é uma religião monoteísta, mas que cultua diversas divindades secundárias, chamadas Orixás. Segundo o pesquisador, na língua africana Deus chama-se Olodumare, que significa Senhor (Olo) do Destino (Odu) Supremo (Mare). 'Os Orixás foram criados para nos levar até Deus. Por esse motivo, nos voltamos a eles durante os rituais', diz.
CLANDESTINOS
De acordo com Walmir, o costume de cultuar as entidades religiosas em terreiros nasceu da necessidade de esconder o candomblé dos senhores de engenho, durante a época da escravidão. ''Os negros faziam os rituais à margem das roças, mas hoje nos manifestamos publicamente. Depois da libertação, não havia condições financeiras para se construir templos. Até porque não cobramos dízimo e algumas pessoas se acomodaram e construíram seus templos dentro da própria casa'', conta o professor.
Ao montar o próprio templo, no bairro do Benguí, o sacerdote não precisou enfrentar nenhum tipo de resistência. Hoje, somente no Templo da Religião Africana há mais de cem adeptos iniciados na religião, além dos incontáveis simpatizantes. ''A Constituição Nacional permite a livre prática religiosa e não me sinto inferiorizado por um padre católico ou um pajé. Os rituais são públicos e não estamos nos escondendo de ninguém'', diz. O candomblé, segundo Walmir, está entre as religiões mais otimistas. Para os adeptos, chamados de Omó Orixás, é possível a reencarnação e todos caminham em direção às suas próprias necessidades.
Para o sacerdote, o preconceito sofrido pela Religião Tradicional Africana é inexplicável. 'Nós, brasileiros, temos sangue negro e indígena', argumenta Walmir. Romper os mitos que cercam o candomblé não é papel fácil de desempenhar. O pesquisador acredita que boa educação dá conta desse serviço. Por isso, Walmir aposta na aplicação rigorosa da Lei 10.639, sancionada em 2004, que obriga o ensino da história e cultura da origem africana brasileira. 'Em pleno século XXI, ainda há rejeição dos professores, por acreditarem que estão desmentindo suas próprias religiões. Ninguém quer impor a religião, mas ela precisa ser explicada para todos', conta.
Walmir conta que teve a primeira experiência com a religião aos onze anos. 'Foi difícil a aceitação da família, essencialmente católica, mas consegui exercer o que acreditava. Em 1977, quando fui para Salvador, me formei e comecei a estudar a religião mais do que como adepto, como um pesquisador'. Descendente de portugueses, o sacerdote tem a pele branca, mas a cor da tez também não é problema para a religião africana. 'Para o candomblé, a questão mais importante está no 'ser', não importa se é branco ou preto, homossexual ou se pertence a outra religião', explica.